Japão para uma brasileira

A curiosidade em conhecer o Japão foi crescendo e se tornou realidade quase que por acaso, quando Sheila teve a oportunidade de fazer as malas e atravessar o mundo para viver em Osaka para ministrar aulas de dança no Japão, o país do sol nascente.

O clássico filme Era Uma Vez Em Tóquio, de 1953, começa com uma série de imagens da capital japonesa. Crianças andam pelas calçadas com seus bonés e mochilas rumo à escola, pequenas casas em uma colina revelam as destrezas em carpintaria dos habitantes do país – muitos detalhes em madeiras e simpáticos telhados com sutis curvaturas. Um trem passa desapressado entre os quarteirões e balança algumas roupas penduradas em um varal ao lado do trilho. As folhas das árvores de galhos retorcidos provêm alguma sombra enquanto senhores com tradicionais quimonos se sentam ao chão e folheiam um livro. O interior das casas é repleto de divisórias de madeira e pequenos artesanatos pendurados nos cantos. Esse era o Japão que povoava a cabeça de Sheila durante sua infância em São Paulo. O país do sol nascente sempre foi imaginado por ela como as cenas dos antigos filmes japoneses, que retratavam a vida cotidiana e quase interiorana – para uma criança acostumada com a imensidão da capital paulistana- de seu povo.

A curiosidade em conhecer o Japão foi crescendo e se tornou realidade quase que por acaso, quando Sheila teve a oportunidade de fazer as malas e atravessar o mundo para viver em Osaka para ministrar aulas de dança no país. Ao desembarcar no Aeroporto de Kansai, em Osaka, o país que ela encontrou era muito mais próximo da abertura de um filme hollywoodiano mostrando a imensidão de Nova Iorque. Uma variedade de luzes das mais diferentes cores, tecnologias futurísticas, um fluxo intenso de pessoas e um mar de prédios para nenhum paulistano colocar defeito denunciavam que o país já não era o mesmo do começo do século.

A surpresa foi grande. Um local novo, diferente do que ela imaginava, com um povo que falava outra língua e até mesmo um novo alfabeto. Sheila mergulhou em um mundo quase que alheio ao que ela estava acostumada a viver, no bairro do Ipiranga. A sensação de estar em território estrangeiro entretanto , não era apenas uma montanha russa de emoções rápida que duraria algumas semanas e resultaria em uma mala cheia de souvenires despachada de volta rumo aeroporto de Guarulhos. O Japão seria a partir daquele dia sua nova casa, onde ela desenvolveria seu novo cotidiano, seus novos hábitos, onde ela conheceria o seu novo supermercado do bairro e as novas esquinas as quais ela dobraria diariamente.

No começo Sheila não falava nada do idioma,porém era auxiliada por Maria, que a havia contratado para o trabalho. Vivia com um grupo de brasileiros e tinha a ajuda de sua contratante, também vinda de terras tupiniquins, para resolver assuntos burocráticos do trabalho, de documentação e relativos a residência. Hoje as coisas mudaram. Sheila construiu aos poucos sua vida no novo país. Hoje mora em seu próprio apartamento, ministra as aulas de dança por conta própria em algumas academias em Osaka e vive de maneira mais independente e integrada a cultura que a acolheu e que hoje é parte importante de sua experiência de vida, como uma mulher brasileira negra vivendo em uma sociedade diametralmente oposta daquela em que nasceu.

Aprendeu a se comunicar na nova língua e descobriu novos modos de se viver no planeta. Desde os pequenos detalhes como a despreocupação dos japoneses em deixar as sacolas de compras no cesto da bicicleta encostada na calçada, sem nenhum vigia, até os diferentes modos deles de se relacionarem, suas personalidades distintas, moldadas por hábitos e ideologias locais. Durante os anos se adaptou à nova vida e construiu também seu próprio ser e estar em Osaka, provenientes de sua vivência como brasileira por lá. Treze anos depois e mais confortável no país ,Sheila reflete sobre a maneira como a vida anda na Ásia, e como isso impactou sua própria maneira de interagir e se construir como um ser individual e coletivo no Japão.

– Quando chegou ao Japão, o que te chamou a atenção logo de início?

Nos primeiros dois ou três dias eu tive uma sensação familiar de estar em casa. Me senti no bairro da Liberdade em São Paulo, era como se tivesse transportado um local para o outro. Estava com o imaginário do Japão antigo, simples, em tons de marrom envelhecido na cabeça, que na hora que cheguei deu lugar a um brilho moderno. Assim como no bairro paulistano, havia tumulto, comércio, restaurantes… e eu também já estava familiarizada a conviver com pessoas orientais e sua cultura. O que me surpreendeu mesmo foi encontrar toda essa vida moderna. O local que morava em Osaka ajudava na sensação: era o centro do centro, havia muito burburinho e barulho de dia e noite. Muitos bares, vida noturna pulsante. Quando cheguei era maio, ou seja, primavera. Havia muito sol, o que fazia com que também tivessem muitas pessoas na rua de dia. A maior mudança do meu cotidiano, foi como eu usava o transporte público, já que por aqui quase não tem ônibus. Perto de casa me locomovia de bicicleta. Era um grande trânsito de bicicletas, um verdadeiro fluxo com as próprias regras. No início foi difícil me habituar. Era muito diferente do Brasil, onde há um certo caos de pessoas se trombando e esbarrando. Por aqui tudo tem uma ordem perfeita. Para ir até os lugares mais distantes os trens resolvem o problema, são extremamente pontuais e organizados, mas a bicicleta ainda é mais prática. Ainda hoje faço tudo de bike. É bom que isso também me deixa ver a paisagem, me deslocar com calma, sem o estresse de São Paulo.

– Como foi conciliar seus hábitos ocidentais com os dos japoneses?

Uma coisa que é um desafio até hoje nesse choque de hábitos é a questão do horário. Eu sempre fui de chegar um pouco atrasada nos lugares. O problema é que no Japão a pontualidade é muito valorizada. No início, minha chefe brasileira, deixava claro que essa característica não existia por aqui. O horário é algo extremamente rígido. Há até mesmo um protocolo de chegar meia hora antes dos compromissos. Ela até entendia a situação e tolerava pequenos atrasos, mas quando entrei em contato direto com os japoneses percebi o quanto tudo isso é levado a sério. O contato entre chefe e funcionário é bem diferente aqui, no meu caso não me diziam diretamente quando ficavam incomodados com atrasos, por exemplo, era alguém que vinha me falar. Nessas situações senti que eles parecem não saber lidar muito bem com estrangeiros, sendo inclusive mais rígidos com os próprios japoneses. Houve um feriado que não fui dar aula, por exemplo, pois não sabia como funcionava os feriados locais. Isso deixou minha chefe bem brava. Outro desafio é a língua. Eu me saio até que bem nisso por ser bastante comunicativa, não ter vergonha de perguntar as coisas, mas o complicado é quando alguém te interpreta errado por algum motivo. Os japoneses, porém, sempre foram pacientes nisso, elogiam minha pronúncia e esforço em aprender o idioma. Percebi que isso tem mais a ver comigo por não ter ascendência oriental. Os brasileiros filhos de japoneses, por outro lado, são constantemente cobrados a falar bem o japonês e se adequar aos hábitos. Algo diferente disso é considerado inadmissível. Essa cobrança mais leve por um lado é boa para se adaptar aos poucos, mas gosto de sair da zona de conforto também, o que te força a se virar.

– No começo da sua vida em Osaka você morou com brasileiros. Quais os impactos que você sentiu quando foi morar sozinha?

Morei com um grupo de brasileiros no primeiro trabalho, aí cada um tomou um rumo quando tudo acabou. Eu acabei indo morar com uma bailarina que trabalhava comigo, a Cláudia, o marido e as filhas. Eles eram brasileiros, mas já estavam por aqui fazia anos. Falavam bem o idioma e me ajudavam muito nisso e também a resolver assuntos burocráticos e de documentos. Eles praticamente me adotaram. Quando eles se mudaram fiquei desesperada pensando para onde iria. Acabei me mudando por intermédio de uma japonesa que me ofereceu trabalho em Centros Culturais .Ela me apresentou a vários locais legais na cidade ,e também aquele que acabaria se tornando meu apartamento. Todo esse processo me ajudou a ir me assentando com calma no Japão até buscar a independência de morar sozinha. Nos primeiros dias houve um certo medo de ficar sozinha, sentir que agora era eu por mim mesma e não mais rodeada de pessoas. Uma amiga morava perto, ia jantar na casa dela de vez em quando… isso ajudou. Surgiram alguns desafios, uma maior responsabilidade de pagar todas as contas sozinha, mas eu já buscava essa independência, ir no mercado, lembrar as coisas que as pessoas me ensinavam para resolver as questões do dia a dia. Tive todo esse processo de aprendizado com muita gente, que me ajudou desde que cheguei, por isso sou muito grata. Mas com certeza no momento que aconteceu de eu ir morar sozinha houve aquele impacto: agora ou eu cresço ou eu cresço.

– Você considera o Japão sua casa hoje?

Tive uma educação muito rígida. Por isso sempre me preocupei em não ser mal interpretada morando com os brasileiros, principalmente com as crianças. Tinha muita cerimônia. Quando mudei para o meu apartamento depois de tanto tempo aqui, percebi uma demora para me sentir a vontade até para colocar os pés no sofá da minha casa, por exemplo. Reconhecer o local que eu estou como minha casa demorou bastante. Tudo era provisório antes e isso de certa forma continuou. Eu nunca montei meu apartamento com a minha personalidade, com minha mobília, as coisas que eu queria. Até hoje existe, portanto, essa espécie de distância, da falta de se sentir completamente à vontade. Eu estou completamente adaptada ao Japão, mas mesmo assim ainda não vejo o país como minha casa.

– Como você percebeu a experiencia do japonês ao conviver com você como estrangeira?

No começo me abordavam na rua e pediam para tirar foto, tocar minhas tranças, minha pele, era um assédio mesmo. Eles pareciam ficar felizes em me ver, perguntavam de onde eu era, elogiavam meus dentes e o fato dos meus olhos serem grandes. Eu senti até um certo endeusamento. Eles me achavam descolada.Eu percebia isso desde os primeiros dias. Com os anos e’ verdade que houve alguma mudança,já que se tornou mais comum estrangeiros por aqui .Mas isso nunca chegou a me incomodar. Eu achava engraçado e diferente o fato de eles me olharem daquele jeito e me considerarem tão curiosa e interessante.

– Como é sua relação com os espaços públicos?

Eu estudei em escola pública, lá éramos sempre orientados a participar de tudo o que a cidade nos oferecia, como bibliotecas públicas, parques e museus. Sempre fiz muita coisa a pé também. Meu pai levava eu e meus irmãos ao Ibirapuera aos finais de semana. A partir disso me habituei a utilizar o espaço público e participar de eventos e atividades como shows no Anhangabaú. Em São Paulo adorava fazer as coisas sozinha, ir à Vila Madalena escutar música ao vivo. Sinto falta de tudo isso. Aqui tem sim bares e discos, mas o ritmo é diferente, o brasileiro parece ter uma energia especial. Aqui as vezes vou ao cinema, mas o idioma é um impedimento. Também já fui a uma peça de teatro tradicional japonês. Eu participo de um grupo budista, vou a parques e museus com amigos as vezes, mas sinto falta da vida cultural de São Paulo. Não apenas da cultural, como da gastronômica: você pode comer pratos de todos os lugares do mundo. Aqui até tem, mas eles são adaptados para o gosto do japones, a comida é mais adocicada, cheiros e sabores fortes não fazem sucesso.

– Como você cuida da sua saúde mental?

Eu adotei algumas características e normas japonesas que me fazem bem. Aqui é tudo tão organizado e ajeitado. É uma engrenagem que as vezes pode ser meio rígida, portanto procuro ser fluída também. Sou sempre muito grata ao lugar que me recebeu, acho que aceitar onde estou é importante para viver bem e isso não importa onde seja. Sempre procuro ver mais os benefícios do que os malefícios e aprender algo novo a cada dia com as pessoas. Isso tudo me encanta e contribuí para que eu me sinta bem. Algumas atitudes culturais eu não entendo ou não concordo, por exemplo algumas questões humanas, mas venho aceitando que eles são desse jeito e tem que ir mudando no tempo deles. Eu aproveito o que o país oferece, sem ultrapassar os limites deles e sempre que posso procuro acrescentar algo positivo com minha visão diferente. Por ser um país de primeiro mundo, ajuda também fatores como a sensação de segurança e a saúde pública. Existem muitos desafios em estar em uma cultura tão diferente, mas não é impedimento.Com o passar do tempo, ao ser bem recebida nos lugares, ver o trabalho caminhar, surge um sentimento de satisfação, aumenta-se a autoestima e isso faz com que eu me sinta mais segura.

– Quais as principais diferenças ao viver no Brasil e no Japão?

Eu não voltei a morar no Brasil, então não sei direito como vejo e percebo as diferenças de hoje em dia.O que eu sei é que no Japão eu percebi o como temos melhores oportunidades. Independentemente da classe social as pessoas têm as mesmas oportunidades, elas tomam o trem juntas, por exemplo. O japonês é um povo mais humilde. Além disso o retorno financeiro vem muito mais rápido aqui. Vejo ainda uma aceitação maior dos japoneses com diferentes hábitos de vestimenta, de usar o cabelo… Uma coisa que me surpreendeu é que vejo o Japão como um país quase nada racista. Eles têm um pouco de nacionalismo, entretanto, há sim certo preconceito com o estrangeiro em algumas oportunidades. Porém eu nunca me senti humilhada ou acuada aqui, sempre fui respeitada.

– Como você se sente morando aí?

Desde que cheguei amo morar aqui. Adoro a segurança, a paz de andar nas ruas, a comida, as pessoas, a sensação de ser bem recebida, a tranquilidade tão distante do caos brasileiro… Ainda hoje sinto isso. A diferença nos dias atuais é que me sinto preparada para partir. Acho que posso aprender mais, tenho vontade de ir para outro lugar passar por novos desafios. Não parei de gostar, mas já me sinto bem alimentada no Japão.


 

Sheila Amarante, psicóloga e bailarina desde sempre

Texto e entrevista:

Henrique Castro | jornalista

Autor: correspondente|psi

psicólogo

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